Um em cada três presos da penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, não teve processo judicial identificado na Vara de Execução Penal relacionada ao presídio, segundo dados da força-tarefa de defensores públicos enviada ao estado após a rebelião que deixou 26 mortos no início deste ano. Será preciso localizar as ações relacionadas a esses detentos.
No total, 454 apenados foram identificados nessa situação — ou 35% dos 1.302 presos no local durante a passagem do mutirão que terminou no último dia 25. As falhas na movimentação dos processos são uma nova faceta da realidade caótica do sistema prisional descortinada pelo trabalho da força-tarefa.
Os dados inéditos apurados pelo GLOBO vêm sendo cruzados com novas informações que chegaram aos defensores desde o fim do mutirão. Cada um dos presos sem processos identificados foi listado pela força-tarefa. Agora, a Defensoria do Rio Grande do Norte começará uma busca ativa.
Serjano Torquato, defensor público do Rio Grande do Norte que fez a coordenação local da força-tarefa, afirmou que, segundo as últimas informações recebidas, há processos que teriam sido remetidos ao Ministério Público, outros estariam no gabinete da juíza porque havia audiências marcadas e alguns poderiam estar até mesmo em outras comarcas.
— Pode ter processo que ainda esteja em alguma outra comarca, referente a um preso que tenha sido enviado mas o processo só chegou posteriormente. Não é comum, mas pode ter acontecido — afirmou Torquato. — Vamos pegar esses processos, que ainda não pegamos, porque, apesar de ter passado duas semanas da força-tarefa, vamos continuar os trabalhos pendentes.
Ele aponta, porém, que o problema do complexo penitenciário de Alcaçuz é sistêmico e não se resume “aos 400 processos que não vieram para a Defensoria”. Passa pela estrutura física da unidade, a falta de estrutura oferecida pela Defensoria e pelo Judiciário, culminando em prejuízos para os apenados.
Sem o processo na vara relacionada ao presídio onde está, o detento é impedido de ter uma execução minimamente razoável da pena, com controle adequado de prazos para progressão de regime e outros benefícios. Eventuais faltas disciplinares e outros atos graves cometidos dentro da cadeia, que resultariam em adiamento de direitos previstos em lei, também ficam sem notificação adequada se a documentação não está disponível.
Em nota, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte disse que a juíza de Nísia Floresta, município onde fica a penitenciária de Alcaçuz, está levantando os “números reais” do problema. Afirmou que a Defensoria Pública “foi levada ao erro” devido a dados dos apenados desatualizados mantidos pelo governo do estado, mas não deu detalhes. Acrescentou ainda que a Corregedoria do órgão não foi comunicada do relatório da Defensoria.
Os defensores públicos encontraram ainda cerca de 70 processos sem detentos. Pessoas que, para a Justiça, estão em Alcaçuz, mas não fazem parte da lista real de apenados. São presidiários que podem ter sido transferidos para outras unidades, e a ação de execução penal não foi remetida. Há ainda a possibilidade de terem fugido ou morrido, antes mesmo da rebelião, sem que o fato tenha chegado ao conhecimento do Judiciário.
Desde a rebelião, Francisco Luiz da Silva procura pelo filho. Ele conta que Guilherme Ely Figueiredo da Silva estava no pavilhão 4 de Alcaçuz, depois de ter sido preso por tráfico de drogas, com uma pequena quantidade de maconha, há menos de um ano. A angústia causada pelas primeiras notícias do massacre só aumentou com a falta de informações sobre o homem de 36 anos.
Francisco peregrinou por instituições, formalizou denúncias, foi a hospitais. Repetiu inúmeras vezes a história. Esmerou-se em fornecer detalhes que pudessem ajudar a localizar o filho, vivo ou morto, como uma tatuagem de dragão nas costas, uma marca de nascença nas nádegas, uma mão deformada em virtude de um acidente e pinos metálicos na clavícula. Em vão.
— Ele não está na lista de Alcaçuz, não está na lista de mortos, não está na lista de foragidos ou transferidos, não está na lista do Itep (Instituto Técnico-Científico de Perícia, que fez a identificação de corpos carbonizados na rebelião). É uma busca sem resposta, um silêncio que atormenta — desespera-se Francisco.
SEM ESPERANÇA
Quase três meses depois da rebelião, Francisco já fala do filho no passado. Conta que, dos três, ele era o mais carinhoso, que nunca lhe dera trabalho, que retomaria um curso de radiologia quando saísse da cadeia, punição que o pai aponta como exagerada.
— Não tenho mais esperança. Se ele tivesse fugido ou sido transferido para outro presídio, já teria feito contato comigo. Ele nunca deixava de ligar — diz Francisco.
Em 21 de fevereiro, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte julgou um recurso movido pela defesa de Guilherme, que pedia desclassificação do crime de tráfico para o de uso de drogas. Os desembargadores votaram de forma unânime pela manutenção da condenação de Guilherme, o filho que Francisco gostaria ao menos de poder enterrar.
Fonte: O GLOBO