Nessa quinta-feira, 7, STF retirou repercussão geral de caso que definiria direito de transsexual ser tratado, socialmente, consoante sua identidade de gênero, como nas situações de uso de banheiro público. Sob o argumento de que o acórdão questionado não trazia questão constitucional, a Corte, por maioria, não recebeu o RE.
O caso, até então com a repercussão geral reconhecida, havia sido suspenso após pedido de vista do ministro Luiz Fux.
Já tinham manifestado posicionamento favorável ao tratamento conforme a identidade e concedendo indenização à transsexual impedida de usar o banheiro feminino, o relator, ministro Luís Roberto Barroso e ministro Edson Fachin.
Nesta tarde, ao proferir voto-vista, Fux votou por retirar a repercussão geral, entendendo que não havia questão constitucional que ensejasse a análise do processo pelo Supremo. S. Exa. foi seguida pelos demais pares, com exceção de Barroso, Fachin e Cármen Lúcia.
Caso
O recurso discutia a reparação de danos morais a transexual que teria sido forçado a sair de banheiro feminino por funcionário de um de shopping center em Florianópolis/SC.
Em 1ª instância a sentença concedeu a indenização. O TJ/SC, no entanto, entendeu que não houve dano moral, mas “mero dissabor” e reformou sentença que condenou o shopping a pagar uma indenização de R$ 15 mil.
Voto do relator
O relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, destacou que os transexuais são uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas da sociedade e ilustrou a gravidade do problema ao observar que o Brasil é o líder mundial de violência contra transgêneros.
Segundo o ministro, a expectativa de vida de um transexual no país é de 30 anos, menos da metade da média nacional, que é de 75 anos, além de apresentar dificuldade de conseguir trabalho formal.
“O remédio contra a discriminação das minorias em geral, particularmente dos transgêneros, envolve uma transformação cultural capaz de criar um mundo aberto à diferença, onde a assimilação aos padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a ser pago para ser respeitado”, ressaltou.
O ministro avaliou que o tema não é simples no debate mundial, uma vez que diz respeito à igualdade na dimensão do reconhecimento e está relacionada à aceitação de quem é diferente, “de quem foge ao padrão, de quem é historicamente inaceito pela ideologia e pelos modelos dominantes”.
Para o relator, “destratar uma pessoa por ser transexual – destratá-la por uma condição inata – é o mesmo que a discriminação de alguém por ser negro, judeu, mulher, índio, ou gay. É simplesmente injusto quando não manifestamente perverso”.
Do ponto de vista jurídico, o ministro apresentou três fundamentos que justificam o reconhecimento do direito fundamental dos transexuais a serem tratados socialmente conforme a sua identidade de gênero: dignidade como valor intrínseco de todo indivíduo; dignidade como autonomia de todo individuo; dever constitucional do estado democrático de proteger as minorias.
S. Exa. observou que toda pessoa tem o mesmo valor intrínseco que a outra, tem consequentemente o mesmo direito ao respeito e à consideração. “A óptica da igualdade como reconhecimento visa justamente a combater práticas culturais enraizadas que inferiorizam e estigmatizam grupos sociais e, desse modo, diminuem ou negam às pessoas que os integram o mesmo valor intrínseco reconhecido a outras pessoas”, concluiu.
Para Barroso, é papel do Estado, da sociedade e de um tribunal constitucional, em nome do princípio da igualdade, “restabelecer ou proporcionar na maior extensão possível a igualdade dessas pessoas, atribuindo o mesmo valor intrínseco que todos temos dentro da sociedade”.
Barroso avaliou que a mera presença de transexual feminino em áreas comuns de banheiro feminino, ainda que gere algum desconforto, não é comparável ao mal-estar suportado pelo transexual feminino que tenha que ingressar num banheiro masculino.
Por essas razões, no caso concreto, votou no sentido de dar provimento ao recurso extraordinário a fim de reformar o acórdão questionado, restabelecendo a sentença que condenou o shopping a indenizar o transexual em R$ 15 mil, por danos morais.
Barroso propôs a seguinte tese para a repercussão geral:
“Os transexuais têm direito a serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público.”
Ministro Edson Fachin e ministra Cármen Lúcia acompanharam voto do relator. No entanto, Fachin considerou que a indenização por danos morais deve ser aumentada para R$ 50 mil.
Divergência
Nesta quinta-feira, 6, ministro Luiz Fux, ao proferir voto-vista, apontou um impedimento preliminar intransponível no caso. Apesar do reconhecimento da repercussão geral, Fux destacou, com base no regimento interno do STF, que é possível alterar o entendimento. Segundo S. Exa., a relevância social da discussão não pode comprometer a sistemática de conhecimento do STF, sob risco de enfraquecer a lógica dos precedentes.
Para o aprimoramento do sistema de justiça e garantia da segurança jurídica, é crucial que a Corte reforce as competências de cada Poder, afirmou o ministro. Assim, o cabimento do RE dependeria do reconhecimento de todos os aspectos do processo de origem e da existência de questão constitucional direta, não reflexa. Ainda ressaltou que o STF não deve analisar questões fáticas.
Fux afirmou que, no caso em questão, o acórdão do TJ/SC concluiu que não houve provas de abordagem rude, agressiva ou motivada por preconceito, ou transfobia. Assim, como o STF se vincula ao quadro fático, a Corte não pode aventar uma questão constitucional não abordada pelo acórdão, já que os autos se restringiram à discussão sobre danos morais, e não ao tratamento social da população transexual.
Votou por negar seguimento ao RE, porque implicaria em análise de fatos, e por cancelar o reconhecimento da repercussão geral, conforme permissivo do art. 323-B, do regimento interno do STF.
Ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes seguiram o posicionamento de Fux.
Manifestação
Como advogado da amicus curiae, ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Intersexos, Paulo Iotti afirmou que a consideração dos ministros de que não foi suscitado tema constitucional é incompreensível. Ressaltou que a afirmação de que “embargos de declaração questionam, não prequestionam” é diametralmente oposta ao entendimento da súmula 356 do STF e ao art. 1.025 do CPC. Pontuou que o caso em si revela a questão constitucional pelo próprio tema, conforme suscitado pelo ministro Barroso em seu voto.
“Com o máximo respeito, a douta maioria do STF não quis julgar o mérito, mesmo reconhecendo que o tema voltará ao STF, pois a ministra Cármen Lúcia disse que é relatora da ADPF 1.069, uma das cinco que movi pela ANTRA contra leis municipais que querem proibir mulheres trans no banheiro feminino.”
O advogado ressaltou que a decisão “equivocada e teratológica” atrasou ainda mais um processo que já dura aproximadamente 15 anos. “O quadro fático do acórdão reconhece que a mulher trans, tratada no masculino o tempo todo pelo acórdão, foi retirada do banheiro feminino por ser transexual”.
Ademais, afirmou que o tema de repercussão geral aventado pelo ministro Fux considera que é possível até mesmo o julgamento dos danos morais se houver esvaziamento do direito constitucional em questão.
Com informações da Folha de SP