O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, nesta terça-feira (25), o julgamento que discute se o porte de maconha para consumo pessoal deve ou não deixar de ser crime no Brasil.
Ainda faltam votar os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia.
A Corte se divide até o momento em três correntes de votos. A que teve mais apoios (5 ministros) é a favor da descriminalização da posse de maconha para uso próprio.
Os ministros também discutem se devem adotar um critério objetivo para diferenciar o usuário de maconha de quem trafica a droga.
Conforme especialistas ouvidos pela CNN sobre o assunto, a forma com que os ministros têm levado a discussão — que está desde 2015 no STF — ainda deixa lacunas e questões em aberto.
Há indefinições como saber quais órgãos seriam os responsáveis para tratar do tema em caso de uma descriminalização. Também existem dúvidas sobre o alcance de eventual decisão aos já condenados pela prática.
Contribui para esse cenário, avaliam os especialistas, a própria tentativa dos ministros de suavizar o alcance do julgamento e de buscar posições intermediárias, diante da pressão de congressistas por um maior rigor penal no tema.
Na última sessão do STF, por exemplo, o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, repetiu que o STF não está “legalizando” a droga.
Conforme Barroso, a “única consequência prática” de descriminalizar o porte de maconha para consumo é que o usuário não terá mais como uma das sanções previstas a prestação de serviços à comunidade.
Em ocasiões anteriores, o ministro tinha adotado um discurso de que o STF não estava tratando da descriminalização da droga.
Já André Mendonça disse, na última quinta-feira (20), que a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal representa “passar por cima do legislador”.
“O legislador definiu que portar drogas é crime. Transformar isso em ilícito administrativo é ultrapassar a vontade do legislador”, declarou.
As posições
Até o momento, os ministros se dividiram em três correntes diferentes para tratar do assunto:
- descriminalizar a posse da maconha para uso próprio (5 votos);
- manter a prática como crime (3 votos);
- considerar a posse de droga para uso como um ato ilícito administrativo, e não penal, mas manter a Justiça criminal responsável pelos casos (1 voto).
Votaram pela primeira corrente os ministros Gilmar Mendes (relator), Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber (já aposentada).
A segunda tem os apoios de Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques.
Apresentou a terceira corrente o ministro Dias Toffoli.
Todos os nove ministros foram favoráveis a definir um critério objetivo para diferenciar usuário de maconha do traficante, com diferentes propostas.
A lei em vigor que trata das drogas estabeleceu consequências e punições distintas para consumo e para tráfico, mas não fixou parâmetros para especificar cada prática.
Isso abre margem para que pessoas sejam enquadradas de acordo com vieses discriminatórios, de acordo com a cor da pele, escolaridade ou local do flagrante, por exemplo.
Sobre esse ponto, a maioria propõe uma quantidade de droga, variando de 10 a 60 gramas para que pessoas flagradas com sejam presumidas usuárias. Dois ministros (Fachin e Toffoli) entendem que essa diferenciação deve ser feita pelo Congresso e pelo Executivo.
Fixar essa diferenciação objetiva busca dar isonomia para os casos de abordagem por droga.
Papel da polícia e retroatividade
Para o advogado criminal Cristiano Maronna, diretor do Justa, plataforma que atua na transparência sobre a gestão do Sistema de Justiça, o Supremo terá que se posicionar sobre os efeitos do que vier a ser efetivamente decidido.
Ele citou como exemplos que demandarão alguma definição saber o que deverá acontecer, na prática, se houver uma descriminalização do porte da maconha para uso pessoal. Mesmo que deixe de ser crime, a prática continuará a ser um ato ilícito administrativo.
“A polícia vai ter autoridade para abordar as pessoas que estão usando maconha? Vão poder encaminhar? Eu acho que não porque a polícia não tem competência para atuar em casos de ilícito civil ou administrativo. Mas acho muito difícil que a polícia deixe de atuar nessas circunstâncias”, afirmou.
Outro ponto a que o advogado se referiu é a diferenciação entre usuário e traficante pelo critério da quantidade da droga abordada – para ele, o ponto mais importante da discussão.
O especialista defende a possibilidade de a regra retroagir para beneficiar quem foi condenado por tráfico por uma quantidade de droga igual ou inferior ao que venha a ser adotado como critério.
“Se essa posição prevalecer, a meu ver, o tribunal deveria decidir como será a aplicação dessa tese aos casos já julgados, então pessoas que foram condenadas por tráfico de maconha com quantidade inferior teriam direito a se beneficiar dessa decisão e eventualmente ter essas condenações revistas”, afirmou.
Segundo Maronna, o tema da política de drogas é polêmico no mundo todo, mas alguns países avançaram no sentido de descriminalizar o consumo por via judicial, como Argentina, Colômbia, México e África do Sul.
“Infelizmente, o debate no Brasil é muito rebaixado, e o nível da discussão muito fraco”, declarou.
“Quando o legislador se omite dolosamente, como é o caso do Brasil, mesmo tomando conhecimento, com base em pesquisas e debates acadêmicos, que a falta de distinção adequada gera injustiça e faz com que usuário seja preso como traficante, isso deveria sensibilizar e mobilizar o Congresso para mudar a lei. Mas a mobilização é para que tudo seja mantido como está”.
Afastamento da Justiça penal
Segundo o presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), advogado Renato Vieira, sócio do escritório Kehdi Vieira, votos como o do ministro Dias Toffoli mandam um “recado” de que o STF está “acuado” diante da pressão que o Congresso “hiper conservador e irresponsável”.
“É incrível que estejamos vivendo um contexto em que o Supremo não está decidindo”, afirmou. “O que se espera de um tribunal constitucional é que ele decida”.
Ele considera que o voto do ministro “desandou” ao manter a constitucionalidade do artigo da Lei de Drogas que é questionado no processo, mesmo depois de fazer abordagens importantes de políticas anti-penalizadoras e desencarceradoras para o usuário de drogas.
Para Vieira, a descriminalização do porte da maconha para consumo teria como consequência esperada o afastamento do contato do usuário com a justiça penal.
Isso tem desdobramentos importantes diante de um sistema prisional superlotado e que viola sistematicamente o direito dos presos, conforme já estabelecido pelo próprio STF.
Sem os chamados efeitos penais, o usuário deixa de ser reincidente se vier a cometer um crime futuramente, por exemplo.
O especialista também disse que, atualmente, a criminalização tem sido usada como legitimação para condutas abusivas da polícia, como a invasão do domicílio.
Pela Constituição, a casa não pode ser violada, exceto se houver uma situação de flagrante. Como o crime de portar ou guardar drogas para consumo pessoal é um crime permanente, o flagrante pode acontecer a qualquer momento.
“O que é um flagrante do artigo 28 [da Lei de Drogas, que criminaliza o pote para uso]? É a droga no corpo, no bolso, ou na casa. O que ocorre? A polícia vê um cara suspeito, persegue, e entra na casa dele. E aí, a conduta está validada, inclusive a invasão do domicílio, porque é um crime permanente”, afirmou. “Isso tem se prestado a legitimar a invasão de domicílio”.
Lei de Drogas
A discussão no STF gira em torno da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006. A norma estabelece que é crime adquirir, guardar ou transportar drogas para consumo pessoal.
Pela lei, a punição para esse crime não leva à prisão e envolve as seguintes penas alternativas:
- advertência sobre os efeitos das drogas;
- prestação de serviços à comunidade;
- medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.,
Apesar de o julgamento tratar das drogas no geral, os cinco ministros já favoráveis à descriminalização restringiram a posição à maconha. Ou seja, por essa corrente de votos, a posse de maconha para consumo não seria mais crime. O porte de quaisquer outras drogas permaneceria como crime.
Ao abrir uma terceira corrente no caso, o ministro Dias Toffoli propôs que seu entendimento tenha alcance sobre todas as drogas, e não só à maconha.
Continua ilícito
Uma eventual descriminalização do porte de maconha para consumo faria com que a pessoa flagrada com a droga para uso próprio (dentro do limite de gramas que vier a ser fixado) deixaria de ser processada criminalmente.
Mesmo que atualmente a prática não leve à prisão, a criminalização é um registro que fica atrelado à vida da pessoa. Com uma condenação criminal, a pessoa deixa de ser ré primária, e pode ser considerada reincidente se vier a praticar outro crime.
Mesmo que o porte de maconha para consumo deixe de ser crime, ainda será considerada uma prática ilícita. Isso porque a substância psicotrópica presente na maconha continua na lista de uso proibido no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A Anvisa faz exceções como os medicamentos registrados que possuam em sua formulação a substância tetrahidrocannabinol (THC), desde que atendidas determinadas as exigências.
CNN