Apesar de derrotados nas eleições do ano passado como aliados de Bolsonaro e omissos diante dos episódios que levaram à tentativa de golpe no 8 de janeiro, tramada em acampamentos em frente aos quartéis, os militares estão mais empoderados do que nunca: eles agora têm autorização formal do governo Lula para, em nome de um plano chamado “Estratégia de Inteligência de Defesa”, reordenar todo seu aparato de espionagem para monitorar ameaças internas e externas, um feito conquistado 38 anos depois de deixarem o poder com o fim de uma ditadura, que se utilizou da arapongagem para perseguir adversários políticos.
Sem nunca terem prestado contas sobre tortura, mortes e desaparecimentos forçados nos anos de chumbo, Marinha, Aeronáutica e Exército podem, a partir do dia 1º de dezembro, dar forma institucional a um projeto para capacitar profissionais de inteligência e utilizar tecnologia de ponta “no combate ao crime organizado, aos ilícitos transnacionais e ao terrorismo”, dentro e fora do país.
É como se o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) não tivesse sob seu guarda-chuva outras 34 agências que desempenham as mesmas atribuições. Os militares nunca deixaram de espionar, mas agora, em vez de apenas integrar um sistema, eles terão poderes para ir além do que fazem Polícia Federal (PF) e Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Publicada no Diário Oficial da União na semana passada, a portaria 5.437, assinada pelo ministro da Defesa, José Múcio, aprova a “Estratégia de Inteligência de Defesa” de 2023, dando sinal verde para que as Forças Armadas possam, com “recursos e pessoal necessários” diagnosticar conjunturas e identificar riscos e ameaças dentro e fora do País que possam ter impactos “no Poder Nacional”.
Em outro trecho, igualmente questionável pelo passado de cooperação com outras ditaduras durante o regime militar, conhecida como Operação Condor, o documento prevê a intensificação das parcerias estratégicas de inteligência e intercâmbio militar “com as FA das nações amigas, e com órgãos e agências nacionais e internacionais de interesse, particularmente com países da América do Sul e lindeiros do Atlântico Sul”.
A portaria de Múcio é, na verdade, a versão final de um texto que vem sendo negociado a partir da promulgação da Constituição de 1988, que deixou num limbo o antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), que só seria extinto no início do governo Fernando Collor, em 1990.
Desde então, os centros de informação de Marinha, Exército e Aeronáutica continuaram funcionando, mas separadamente, sem a articulação de um órgão central.
Ao ser editada, ela se baseou em definições genéricas da Constituição, na lei que criou a Abin e o Sisbin, dois decretos, quatro portarias e uma instrução normativa que, juntadas, deram formato a um plano de inteligência que, agora, em nome da defesa do País, é só dos militares.
Equipamentos modernos
Fontes da PF e da Abin consultadas por ISTOÉ avaliam que o Brasil precisa de Forças Armadas equipadas com o que há de mais moderno em inteligência, desde que o aparato esteja voltado à defesa do País contra ameaças externas e proteção da soberania e dos interesses econômicos e sociais do País, como a biodiversidade e recursos minerais estratégicos na Amazônia – uma cobiça internacional.
Os dois órgãos temem que ao avançar no combate a crimes como terrorismo e tráfico internacional de drogas, por exemplo, hoje sob responsabilidade da Polícia Federal, as Forças Armadas possam querer assumir papel central no Sisbin e, como no passado, militarizar atividades de inteligência que atualmente estão sob controle civil.
A preocupação faz sentido. Num dos capítulos anexados à portaria de Múcio, os militares escrevem, por exemplo, que o sistema de defesa deve promover a integração e participação dos demais órgãos e agências do Sisbin por meio de cursos e estágios “nas Forças, bem como na Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola Superior de Defesa (ESD)”, que capacitariam profissionais de inteligência de acordo, é claro, com a doutrina militar de inteligência e segurança. ESG e ESD foram formuladores das teorias que, postas em prática, garantiram os 21 anos de ditadura, a mais longeva da República.
Autor de uma PEC que delimita o poder dos militares com nova redação do artigo 142 da Constituição, equivocadamente interpretado por extremistas ligados a Bolsonaro como dispositivo que dá aos militares poder moderador – um eufemismo para intervenções golpistas -, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP) levará o texto da portaria de Múcio para debate na Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência (CCAI), da qual é membro titular.
“É um regulamento de uma inteligência militar que sempre existiu. A diferença é que no passado essa inteligência era usada para espionar, torturar e matar. Nesses casos normalmente 99% (do texto) são iguais ao que já se sabe. É preciso ver o que muda em relação ao que existe. O que não pode é espionar a sociedade”.
O problema é que os militares espionam e de todas as formas que se conhece. Em setembro de 2016, já no governo de Michel Temer, durante protestos contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, lembra Zarattini, o homem que se apresentava nas redes sociais como o jovem esquerdista Balta Nunes era, na verdade, um capitão da inteligência do Exército, Willian Botelho, infiltrado nos movimentos.
Preso na ocasião, foi libertado e, três meses depois, promovido a major.
Os partidos de esquerda com assento no governo acham que uma das alternativas para a criação de uma política de inteligência nacional é a participação das Forças Armadas que são, de longe, as instituições com mais cultura, capacitação, recursos humanos e meios de defesa.
O PSB do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, é o único que tem em sua estrutura um setor preocupado com inteligência, operado por um ex-ativista da esquerda armada e estudioso do tema, o advogado Acilino Ribeiro, que coordena o Movimento Popular Social Socialista (MPS), vinculado ao partido.
“Acho que estava faltando um plano de defesa nacional. Me preocupa apenas a forma como seria implantada essa política. Os militares teriam de mudar a doutrina de inteligência, acabando com a velha teoria de inimigo interno na qual qualquer opositor é visto como comunista. Foi isso que aprenderam na Escola das Américas, no Panamá, de inspiração imperialista, e muito próximos do que praticam agências de inteligência como a CIA (EUA) e Mossad (Israel). Não por acaso, empresas israelenses e norteamericanas fornecem 76% dos equipamentos de inteligência usados no Brasil para espionagem”.
Da mesma forma que defende a presença militar, Ribeiro acha que inteligência não deve ser um monopólio estatal: “É necessário criar no Brasil uma rede de inteligência cidadã, que se capacite para vigiar o estado e seus aparatos de espionagem”.
Especialista em militarismo, o professor e historiador Francisco Carlos Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avalia que o plano de inteligência de defesa chancelado pelo ministro José Múcio está longe das questões externas contemporâneas – como prevenção contra as emergências climáticas -, dissociado de problemas internos graves (o uso da rota do Rio Solimões pelos cartéis de cocaína) e é, na essência, a repetição da ideologia de tutela militar sobre a República, alinhada à antiga ideia da guerra fria.
Teixeira acha que Múcio, por não ter experiência em gestão militar, foi levado pelos comandos a agir, não como ministro de Lula, mas como embaixador das Forças Armadas junto ao governo.
“O governo Lula 3, orientado por seu núcleo político palaciano, que só fala em virar a página do 8 de janeiro, não compreendeu que o inimigo não é mais o PSDB do Lula 1 e 2, e sim o fascismo, que quer derrubar a República. Lula ficará marcado como quem perdeu a oportunidade de romper com uma tutela militar de 124 anos de história”.
IstoeÉ