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Juízes federais divulgam carta aberta em defesa do juízo de garantias: “indispensável à concretização dos direitos humanos”

A CARTA ABERTA FOI ASSINADA POR CINQUENTA JUÍZES E DESEMBARGADORES

Cinquenta juízes e desembargadores federais assinaram uma carta aberta em apoio a criação do “juiz das garantias”. O texto afirma que a nova normativa representa “um passo decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz se confunde com a do investigador/acusador, indo ao encontro do modelo acusatório consagrado na Constituição da República (artigos 129, I e 144)”.

Assinam a carta magistrados como os desembargadores federais Ney Bello (TRF-1), Roger Raupp Rios (TRF-4) e Celso Kipper (TRF-4).

Leia a carta na íntegra:

A Lei n. 13.964/19 modificou o Código de Processo Penal para, dentre outros pontos, introduzir no sistema de justiça criminal brasileiro o “juiz das garantias”, cujas atribuições consistem em controlar a “legalidade da investigação criminal” e garantir os “direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário” (art. 3º-B, CPP).

Sem entrar no mérito das demais modificações operadas na legislação penal e processual penal brasileira pela Lei n. 13.964/19, nós, juízas e juízes federais abaixo identificados, manifestamos nosso apoio à adoção, no Brasil, do instituto do “juiz de garantias”. Trata-se de figura indispensável à densificação da estrutura acusatória de processo penal (imparcialidade do juiz e separação das funções dos sujeitos processuais) e à concretização de direitos humanos.

Ao dispor sobre o “juiz de garantias”, a nova lei estabelece uma hipótese de divisão da competência funcional do juízo e de impedimento decorrente dessa divisão: a competência do “juiz das garantias” finda ao ser recebida a denúncia ou queixa (art. 3º-A, CPP), de modo que, se uma/um magistrada/o atuar na fase preliminar de investigação, não terá competência funcional para jurisdicionar no processo, porquanto objetivamente impedida/o de instruir e julgar as ações penais dela originada, sob pena de nulidade de suas decisões[1] (art. 3º-D, CPP).

Eventuais dificuldades logísticas decorrentes do afastamento do juiz das garantias/juiz da instrução e julgamento da sede do juízo onde tramita o inquérito/ação penal podem ser resolvidas com regras de distribuição dos feitos entre juízas/es com competência criminal a serem editadas pelos tribunais e com recursos tecnológicos do processo eletrônico, que tornam cada vez mais realizável a ideia de “núcleos regionais das garantias”[2] criados a partir de critérios prévios, impessoais e objetivos. Mesmo em uma vara única em que atuem dois juízes, por exemplo, basta determinar que, no processo em que um deles atue como juiz de garantias, o outro jurisdicione como juiz de processo e vice versa. Não há órgão novo. Não há nova instância. Há divisão funcional de competência.

Afigura-se a novidade como um passo decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz se confunde com a do investigador/acusador, indo ao encontro do modelo acusatório consagrado na Constituição da República (arts. 129, I e 144). Com o “juiz de garantias”, aprofundamos a estrutura acusatória do sistema de justiça criminal, impedindo a indevida e indesejável cumulação das funções de garantia e as de julgamento, pois a/o juiz/juíza que decide sobre (ausência de) culpa não participa da investigação criminal, não produz prova por iniciativa própria e tampouco fundamenta condenação com elementos de convicção obtidos sem contraditório judicial. Com o novo regramento, cabe à juíza/ao juiz de julgamento conhecer apenas os atos de prova produzidos em contraditório, e não mais os atos de investigação conduzidos pela/o juíza/juiz das garantias, que permanecem acautelados em juízo distinto, sempre com acesso às partes (art. 3º-B, §§ 3º e 4º, CPP). Na figura do “juiz das garantias”, cria-se “circunstância que objetivamente afastará o magistrado da fantasmagórica suspeita de acusador/investigador, tão rechaçada pelos instrumentos internacionais de direitos humanos”[3].

Além disso, a nova divisão funcional de competências atua no sentido da preservação da imparcialidade do juiz de julgamento, aprimoramento há tempos exigido não só por nossa Constituição da República desde 1988 como, também, pelas disposições normativas e jurisprudenciais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, razão pela qual grande parte dos países da América Latina já introduziram a figura do “juiz das garantias” em seus sistemas de justiça criminal.

A criação do “juiz de garantias” representa a qualificação da garantia do juiz imparcial tal como compreendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao interpretar o artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a exemplo dos casos Castillo Peruzzi, Durand e Ugarte, Cantoral Benavides, todos versus Peru, bem como no Caso Tibi versus Equador, nos quais a Corte concluiu ser imprescindível a “separação de funções entre o juiz da fase da investigação e o do processo, sob pena de violar-se a imparcialidade do julgador.”[4]

No caso Castillo Peruzzi versus Peru, a CorteIDH concluiu ter havido violação à garantia do juiz imparcial ao detectar “coincidência entre as funções de luta antiterrorista das Forças Armadas e o desempenho jurisdicional” por parte dos “tribunais militares, que seriam ao mesmo tempo parte e juiz nos processos. Para a CorteIDH, se o mesmo juiz que instrui a investigação exerce as funções de julgamento, a garantia do jurisdicionado a um juiz imparcial estará violada.” No caso Durand e Ugarte, a CorteIDH entendeu que “a justiça militar peruana tanto foi a encarregada pela investigação quanto pelo processamento dos militares envolvidos”, havendo, portanto, “grave violação à garantia processual do juiz imparcial.” Por fim, no caso Cantoral Benavides versus Peru, a CorteIDH manteve o entendimento firmado nos casos anteriores, concluindo que o acúmulo das funções de conduzir investigações e instruir/julgar processos penais aniquila a garantia de um juiz imparcial, o que se apresenta “totalmente dissonante com o sistema acusatório, para o qual a garantia da imparcialidade é alicerce.”[5]

Defendemos que a melhor justiça criminal será prestada por uma magistratura que recusa a renitência persecutória de Javert e também o arbitrário aprisionamento das diferenças pelo Alienista. Repudiamos o papel de juiz que se mostra “de braços dados com a acusação, em uma cruzada pelo clamor público e pelos valores morais e absorvendo todo o discurso moralista do senso comum”. Trata-se de um erro que se torna “maior ainda quando Deus invade o Estado laico e conclama a todos para a cruzada metafísica contra um inimigo etéreo.” A ideia de um juiz combatente “nos faz abandonar a construção moderna de um Poder Judiciário independente, imparcial e afirmativo dos direitos fundamentais.”[6]

Juramos cumprir e fazer cumprir a Constituição, garantindo as liberdades públicas e concretizando direitos mesmo que – ou especialmente quando – as maiorias de ocasião, sejam as das ruas ou as dos gabinetes, possam com seu ódio aniquilar as minorias políticas. Não seremos nós os Porteiros da Lei.

DCM

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