Érika Cristina da Silva foi estuprada dos nove aos 13 anos e, nesse período, engravidou duas vezes de seu agressor. Perdeu as duas crianças logo após os partos, prematuros. Conseguiu fugir, casou-se duas vezes e teve quatro filhos —”esses porque quis”, ela frisa. Mas enfrentou problemas de saúde nessas quatro gestações. E nunca sentiu prazer nos seus relacionamentos, o que, segundo ela, seria uma consequência dos traumas que os estupros causaram.
Engravidar na infância não significa necessariamente que a mulher terá a saúde comprometida no futuro ou problemas nas gestações seguintes, diz a obstetra Karina Tafner, especialista em reprodução assistida. “Se for uma gestação normal, acompanhada desde o início, não há consequência para a saúde física desta mulher. Mas, num caso como esse, de estupro, as alterações psicológicas são profundas.”
Hoje, aos 40 anos, solteira e trabalhando como faxineira, em Piracicaba, no interior de São Paulo, Érika relata como convive com essas lembranças.
“Meu pai morreu quando eu tinha sete anos. Sem ele, minha mãe perdeu o barraco onde vivíamos, numa favela na Cidade Jardim, em Americana (a 120 km de São Paulo). Fomos para a rua eu, ela e meu irmão, na época com um ano e meio. Uma pessoa, certa vez, se ofereceu para nos ajudar e, numa distração da minha mãe, levou esse meu irmão. Nunca mais tivemos notícias dele.
Andávamos pelas ruas o dia inteiro e fomos parar em Itapetininga (SP). Perto de eu completar nove anos, minha mãe resolveu morar numa chácara com um homem com quem começou a se relacionar na rua. O local era afastado, no meio do mato, e eu tinha medo. Esse homem passava a mão em mim, mas ela não acreditava quando eu contava, então fugi e voltei para as ruas.
Um dia, uma mulher me abordou enquanto eu brincava num parque da cidade e disse que cuidaria de mim. Ela me levou para sua casa. Chegando lá, encontrei uns caras manipulando drogas. Eram traficantes.
Primeira gravidez aos 9
“O filho dessa mulher começou a abusar de mim e engravidei pela primeira vez com nove anos. Nem sabia direito o que estava acontecendo comigo. Continuava brincando e via a barriga crescendo. Todo mundo sabia dos abusos.
Meu parto aconteceu aos seis meses de gestação. Eu pesava 32 quilos e tive uma menina. Foi um escândalo na época e até apareceu polícia no hospital. Mas a mulher que me pegou tinha arrumado uma certidão falsa, em que dizia que era minha mãe. E afirmou que não sabia quem tinha abusado de mim. Eu também tive medo de contar a verdade.
Não sei dizer o que aconteceu, mas minha filha morreu quatro horas depois do parto. Acho que porque nasceu prematura. Era muito miúda. E eu quase não comia. O que me lembro daquele dia é que tive muita dor, mas não senti afeto de mãe. A morte da minha filha não foi sentida.“
Segunda gestação e fuga
Engravidei novamente um ano depois. E, de novo, perdi a criança, da mesma forma. Também era uma menina. A mulher que fingia ser minha mãe contou no hospital que eu era namoradeira. Ninguém desconfiou de nada.
Consegui fugir dessa casa aos 13 anos com a ajuda de uns vizinhos. Acho que não denunciavam o que acontecia comigo por medo. Voltei para Americana. Encontrei antigos conhecidos da minha mãe e pedi ajuda. Soube, um tempo depois, que o homem que me estuprava e a mãe dele foram mortos. Mas nunca fui à delegacia contar o que aconteceu comigo.
Quanto à minha mãe, ela diz que chegou a ir atrás de mim e me viu grávida, andando numa feira. Mas, quando soube que eu estava vivendo com bandidos, ficou com medo de chegar perto. Não sei se é verdade. A gente voltou a ter contato alguns anos depois.
Até os 25 anos, eu sentia ódio de todo mundo, incluindo a minha mãe. Eu a culpava por tudo o que aconteceu comigo. Tive depressão e tentei me matar.
Casei duas vezes e, com cada um dos maridos, tive dois filhos. Todos desejados. Mas também tive infecções em todas as gestações e nunca completei os nove meses de gravidez. Tomava remédio para não perder as crianças. Também não podia fazer nada. Era repouso total. Meus filhos hoje estão com 24, 21, 18 e 10 anos. Eu contei minha história para alertar a eles sobre as maldades do mundo.
No meu primeiro casamento, conseguimos uma casa popular da prefeitura. Quando nos separamos, a casa ficou pra mim. Vendi esse imóvel e hoje vivo numa casa melhor. Trabalho como faxineira, profissão que eu amo. E tenho o meu carro também.
Em casos como o meu, de crianças que são abusadas, sou a favor do aborto. Como fica a vida de uma menina que tem um bebê? E como explicar para essa criança que ela foi fruto de estupro?.
Tenho problemas para me relacionar até hoje. Nunca tive prazer, mas vivo em paz comigo mesma. Tomei a decisão de não ter mais parceiro. Procurei uma igreja e deixei meus traumas adormecidos. A fé é importante para superar, não importa a religião.”
Universa/Uol