O jornal O Estado de S. Paulo publicou nesta quarta-feira (21) uma reportagem que levanta suspeitas sobre uma contratação feita pelo Governo Federal para obras de manutenção dentro do presídio federal em Mossoró, de onde presos ligados ao Comando Vermelho fugiram no último dia 14.
De acordo com a reportagem, a empresa contratada em 2022 tem faturamento anual de R$ 195 milhões, mas seu dono, no papel, é um beneficiário do auxílio emergencial que mora na periferia de Brasília.
O contrato foi assinado em abril de 2022, na gestão de Anderson Torres no Ministério da Justiça do governo Jair Bolsonaro (PL), e prorrogado um ano depois, em abril de 2023, na gestão de Flávio Dino, do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os contratos foram firmados por meio dos respectivos setores que cuidam de presídios no ministério.
Especialistas consideram grave o fato de um presídio de segurança máxima contratar uma empresa sem saber quem é o verdadeiro dono. Uma das suspeitas investigadas é a de que uma obra teria facilitado a fuga dos criminosos – a primeira na história dos presídios de segurança máxima do País.
Em nota, o Ministério da Justiça informou que acionará “os órgãos competentes federais para que seja realizada rigorosa apuração referente à lisura da empresa citada”. Destacou também que, na assinatura do contrato, em 2022, a empresa cumpriu todos os requisitos técnicos, apresentou todas as certidões de conformidade e vinha cumprindo todas as suas obrigações.
Qual foi a empresa contratada e quais as suspeitas?
A empresa em questão é a R7 Facilities, sediada em Brasília. Ela foi contratada para realizar obras de manutenção no presídio federal de Mossoró por R$ 1,7 milhão. A companhia informou, em balanços de 2023, ter R$ 353 milhões em contratos ativos com os setores público e privado.
Apesar do tamanho da companhia, o sócio-administrador é um técnico de contabilidade que recebeu 12 parcelas do auxílio emergencial, benefício pago a cidadãos em vulnerabilidade financeira durante a pandemia da Covid-19. Gildenilson Braz Torres, de 47 anos, tem como endereço uma casa simples no Riacho Fundo, região periférica do Distrito Federal, e não soube dar informações sobre a operação da empresa.
O histórico de Gildenilson não bate com o de um empresário vencedor de contratos milionários. Ele é cobrado na Justiça pelo governo do Distrito Federal por não pagar uma dívida de R$ 8.338,10, referente a parcelas de 2017 a 2020 de um imposto sobre serviços autônomos. Em fevereiro de 2022, um juiz determinou o bloqueio de bens, mas só foram encontrados R$ 523,64 nas contas dele.
Gildenilson afirma ter um escritório de contabilidade no Núcleo Bandeirante, bairro da periferia formado pelos “candangos” da construção de Brasília. No endereço, há uma placa em que ele se apresenta como o responsável pela empresa “Mega Batatas”. Não há qualquer menção à R7 no prédio nem nas redes sociais dele.
Gildenilson afirmou ter CEO, diretores e outros empreendimentos, mas que não podia dar informações sobre eles. Ele desligou o telefone logo após a reportagem insistir em mais detalhes.
“Cara, tipo assim, ‘tá’ rolando uns negócio aí do contrato que a gente tem terceirizado de Mossoró. É sobre isso? Tipo assim, tenho de conversar com meu advogado. Não posso falar nada sem conversar com ele. Qualquer coisinha, pego seu número e entro em contato”, afirmou.
A reportagem também esteve no endereço que Gil, como é conhecido, informa como residencial, no Riacho Fundo. Ele não estava. O concunhado dele mora no local e afirmou desconhecer o vínculo de Gildenilson com uma empresa milionária. “Se fosse verdade, ele não estaria andando com o carro velho em que ele anda”.
Suspeitas de laranja
Gildenilson virou sócio-administrador da R7 Facilities em fevereiro de 2023. Dois meses depois, ele assinou o aditivo com o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), para os serviços de manutenção em Mossoró.
Antes, desde janeiro de 2021, a companhia estava em nome de outro “testa de ferro”, o bombeiro civil Wesley Fernandes Camilo. Foi ele quem assinou o contrato, em 2022, com o antigo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), atual Senappen.
Hoje, Wesley Camilo trabalha como brigadista em um hospital particular de Brasília e afirmou ter renda mensal de R$ 4 mil. Mesmo assim, alegou estar satisfeito por ter repassado a empresa de balanço milionário da qual aparecia como único dono.
Camilo mora numa casa em Ceilândia, uma das regiões mais pobres do Distrito Federal. A reportagem encontrou um Volkswagen Nivus em sua garagem. O carro, avaliado em R$ 111 mil, está registrado em nome da R7 Facilities.
O bombeiro civil afirmou que comprou a empresa milionária sem desembolsar nada. Segundo ele, a firma foi repassada com créditos não recebidos e ele trabalharia para recuperá-los. O brigadista negou ter sido um laranja.
“Na realidade, irmão, eu comprei do Ricardo e passei para para o Gil. Mas isso aí, bicho, vai além de tudo isso. O meio é fogo, irmão. É só você pesquisar. Para ficar num meio sujo e perverso, melhor sair e passar para a mão dos caras”, disse Wesley, negando-se a detalhar a que se referia.
O fundador da empresa é Ricardo Caiafa, um empresário de Brasília. Ele afirmou que decidiu vender a companhia porque enfrentava dificuldades no mercado e decidiu sair do ramo. Foi procurado por um advogado que intermediou a negociação para Wesley Camilo.
Caiafa afirma não ter mais ligação com a R7. Diferentemente dos novos donos, ele mora em uma casa no Lago Sul, considerado o bairro com a maior renda per capita do País. A reportagem não encontrou indícios de que ele tenha vínculos com o grupo que controla a empresa atualmente.
A R7 presta serviços para o governo federal pelo menos desde setembro de 2016, segundo o Portal da Transparência. Com o Ministério da Justiça, o primeiro contrato é de fevereiro de 2019. Nesses casos, a gestão da empresa ainda era do fundador, Ricardo Caiafa. Os contratos com o Executivo federal dobraram após a entrada dos laranjas.
O que dizem os ex-ministros e a empresa
As assessorias de Anderson Torres e Flavio Dino, que estiveram à frente do ministério entre 2022 e o início de 2024, informaram que o contrato não teve qualquer relação com os ex-titulares da pasta porque é assinado no departamento que cuida da área de presídios, dentro da própria pasta.
Em nota, a empresa R7 Facilities alegou que é “imprudente” e “preconceituoso” se referir a Camilo e Gildenilson como laranjas.
“O sr Wesley Camilo foi sócio da empresa R7 Facilities e o sr Gildenilson é o atual sócio, como pode ser verificado em documentos públicos junto à Junta Comercial do Distrito Federal”. A empresa se recusou a comentar sobre a fuga dos dois presos ligados ao Comando Vermelho, não especificou como atua no Rio Grande do Norte e não informou se irá colaborar com as investigações.
Estadão