É inegável que o covid-19 trouxe repercussões em escala mundial para os mais variados setores sociais, atingindo frontalmente o turismo e a indústria do entretenimento, conhecido como show business.
No entanto, mesmo com um esforço legislativo para minimizar os reflexos do vírus na economia, nas relações trabalhistas e tributárias, ainda permanecia carente uma posição do Governo Federal para socorrer o turismo e, principalmente, minimizar os impactos sofridos pelos artistas e empresários que já estavam programados com diversas apresentações em todos os cantos do Brasil.
Deste modo, apontam-se as inovações trazidas pela MP 948/20 a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, em 8 de abril de 2020, especialmente sobre a possibilidade de cancelamento de serviços, reservas e eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública enfrentado pela pandemia do coronavírus, reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020.
Inicialmente, a medida provisória preceitua que na hipótese de cancelamento de serviços, reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não precisa reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegure ao mesmo o (i) direito a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; (ii) disponibilize o valor investido como forma de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou, (iii) outro acordo a ser formalizado com o consumidor (art. 2º, incisos I ao III, MP 948/20).
Chama-se atenção neste ponto para a importância e valorização que a MP deu ao princípio da autonomia da vontade e da função social do contrato, ambos tipificados no art. 421, do Código Civil, bem como ao princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, ambos esculpidos no parágrafo único do mesmo artigo.
Mas não é só. Diante do cenário mundial enfrentado, a medida vem ao encontro de um novo modelo metodológico intitulado Direito Civil Constitucional, onde se busca romper com a velha dicotomia do público x privado para de uma vez por todas analisar os institutos que regulam as relações comerciais não só a luz do Código Civil e outros diplomas legislativos importantes, como o Código de Defesa do Consumidor, mas também – e principalmente – sob o manto da Carta Republicana de 1988 e os princípios dela extraídos1. O momento exige isso.
Não há como se valer isoladamente das leis que regulam as relações privadas para colocá-las como uma fórmula infalível de todos os imbróglios entre particulares. Também não há como aproveitar-se da situação para invocar a legislação consumerista simplesmente limitando-a ao entendimento de hipossuficiência do consumidor. Aqui, entendendo a complexidade atual, estava sendo necessária a posição tomada pela MP 948/20, trazendo situações escoradas em normas constitucionais que são voltadas para a atuação do Estado em face da sociedade. O turismo, os artistas e os empresários agradecem!
E como bem disse o eminente ministro Luís Roberto Barroso em sua sabatina para o Supremo Tribunal Federal, em 5 de junho de 2013, no Sendo Federal: Nós vivemos a época da tolerância, a época em que se deve respeitar todas as possibilidades razoáveis de vida boa. A verdade não tem dono, existem muitas formas de ser feliz. Cada um é feliz a sua maneira e desde que não esteja interferindo com a igual possibilidade de outrem, é isso que nós devemos fazer, respeitar2. Logo, numa busca de evitar incontáveis litígios contra empresários e empresas responsáveis pelo setor hoteleiro, sobretudo contra aqueles vivem do show business, a medida veio ao encontro de todas as possibilidades razoáveis para uma vida boa ou, no mínimo, para trazer calma nesse período de tantas incertezas.
Seguindo com as novidades, mesmo sem deixar expressamente em seu texto, é fato que a MP afasta o princípio da reparação integral do dano, consagrado no Código Civil e no direito consumerista, no art. 6º, inciso VI, da lei 8.078/90. Em outras palavras, o texto apresenta quase que compulsoriamente uma excludente de ilicitude para o artista e empresário. Porém, ainda que haja críticas acerca dessa previsão, tal medida se faz necessária. Nem só de crédito fornecidos por bancos vivem os empresários, são necessárias medidas como essa para evitar o endividamento daqueles que possuem a arte como única forma de renda.
Aliás, a MP foi ainda mais longe ao trazer hipóteses de prazos decadenciais, pois deixa claro ao consumidor que o direto ao cancelamento deve ser exercido no prazo de 90 (noventa dias), contados de sua publicação. Caso contrário, poderá sofrer a aplicação de custo adicional, taxa ou multa (§ 1º, art. 2º, MP 948/20).
Contudo, se feita dentro do prazo a solicitação pelo consumidor, o crédito decorrente de uma reserva de hotel ou ingresso de um show, por exemplo, poderá ser utilizado no prazo facilitado de 12 (doze meses), contados a partir da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020 (§ 2º, art. 2º, MP 948/20). Ou seja, não se conhece ainda o termo inicial desse prazo, mas sabe-se que o prestador de serviços ou a sociedade empresária não terá seu capital diminuído e o consumidor terá a faculdade de se programar com antecedência para uma nova data.
Por outro lado, a MP também trouxe que a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados, devem respeitar a sazonalidade e os valores dos serviços originalmente contratados, bem como o prazo de 12 (doze) meses acima explicado (§ 3º, art. 2º, MP 948/20). E, em que pese ter assim disciplinado, é sabido que por força da autonomia da vontade e da excepcionalidade da revisão contratual, é possível que as partes formalizem outro acordo para utilizar da reserva em hotel feita na baixa temporada para outra data em alta temporada, ou até mesmo trocar o ingresso de um show organizado pela mesma empresa para o de outro artista em nova data, por exemplo. Isso será possível desde que haja eventuais abatimentos ou complementos por parte do consumidor, a depender da situação. Tanto é verdade que a própria MP garante no art. 2º, inciso III, que o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos se formalizarem outro acordo com o consumidor.
No mais, a medida trouxe para os artistas contratados até 8 de abril de 2020, data de publicação da MP 948/20, e que forem impactados por cancelamentos de eventos, que não terão obrigação de reembolsar imediatamente os valores dos serviços ou cachês se o houver remarcação do evento no prazo de 12 (doze) meses, o qual somente começa a sua contagem a partir de quando findar o estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6/20. Caso não façam as devidas remarcações, o valor a ser restituído deverá ser atualizado monetariamente pelo IPCA-E, no prazo de 12 (doze) meses, também contados da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6/20 (§ único, art. 4º, MP 948/20). Essas previsões praticamente se repetiram no § 4, do art. 2º, e no art. 4º e § único, da MP 948/20).
Tais medidas eram ansiosamente aguardadas pelos artistas e empresários do ramo artístico e do turismo. O Governo Federal, enfim, apresentou medidas que de alguma forma protegem e confortam a classe artística.
Para se ter uma noção do tamanho impacto, a Associação Brasileira dos promotores de eventos – ABRAPE, apresentou dados avassaladores, na medida em que “51,9% dos eventos previstos para ocorrer este ano foram cancelados, adiados ou estão em situação incerta. Outro dado assustador, também divulgado pela entidade, que reúne entre seus associados cerca de 60% do PIB de eventos do país, é o de que cerca de 580 mil profissionais da área poderão perder os empregos em todo o Brasil”.
O impacto não é só no Brasil, mas sim mundial. O estado atual do entretenimento no mundo é de apagão, em um mercado global de shows estimado em 29 bilhões de dólares. Para se ter uma ideia da dimensão da crise, todos os 31 espetáculos musicais da Broadway, em Nova York, foram encerrados. Encravada no coração de Nova York, epicentro da epidemia nos Estados Unidos, a meca dos musicais prevê perdas de 565 milhões de dólares3.
É essencial esclarecer, portanto, que o cancelamento de shows, eventos, pertinentes ao ramo artístico da música e outras atrações vinculadas, não foi e não é culpa do artista ou do empresário, mas de situações de força maior e caso fortuito (porquanto até os dias atuais, não se tem a conclusão da origem do covid-19 – manuseio pelo homem de animais receptadores do vírus, ou pela força da natureza propagada no ambiente).
A força maior e o caso fortuito, excludentes da responsabilidade civil não acompanha apenas o consumidor, em suas relações obrigacionais, quando o dito consumidor é pessoa passiva da obrigação, da responsabilidade. O empresário, o artista, a empresa do ramo artístico, deixa de promover shows, eventos, aglomerações, por ordem governamental, pelo bom senso e pela preocupação de garantir a preservação da vida, considerando que onde existirão pessoas, nestes dias terríveis de pandemia, haverá possibilidades de transmissão do vírus.
Desta forma, o cancelamento de shows não importa em obrigações de ressarcimento de valores, imediatos, mas comprometimento no futuro próximo que o evento ocorrerá, de bom grado, para todos.
Por fim, sem qualquer timidez, a medida provisória também quis frear a imagináveis possibilidades de propositura de ações fundadas no ato ilícito exclusivamente moral, sobretudo aquelas pautadas nas relações de consumo. Tanto é que deixou expresso que as medidas por ela reguladas caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades.
À beira do nocaute, o turismo, os artistas e os empresários respiram com a medida provisória 948/20. O fôlego diante de tantas incertezas e inseguranças jurídicas apresentadas pelo atual cenário mundial traz, ainda que distante, um ar de esperança para aqueles que combatem um bom combate.