O cigarro eletrônico surgiu como uma promessa de auxílio para quem deseja parar de fumar. Bastante controverso no mundo, ele é visto como redutor de danos – uma forma de minimizar o impacto do tabagismo na saúde – em alguns países, especialmente no Reino Unido, e tratado com cautela em outros, como no Brasil e na Espanha.
A Public Health England (PHE), uma agência do Serviço de Saúde da Inglaterra, realizou uma experiência para comparar efeitos do produto, também chamado de e-cigarette, e-ciggy, e-cigar e caneta a vapor, entre outros nomes, com os dos cigarros tradicionais (comburentes).
Pesquisadores utilizaram dois recipientes cheios de chumaços de algodão: o primeiro foi exposto durante um mês ao fumo do tabaco e, o segundo, ao vapor dos eletrônicos.
No vídeo divulgado pelo órgão britânico, o pote que recebeu o cigarro de combustão aparece totalmente impregnado e pegajoso, com uma coloração escura e carregado de alcatrão, enquanto o do eletrônico contém apenas vapor.
A conclusão foi que este tipo de produto é menos prejudicial e tem potencial para exercer um importante papel na redução do impacto na saúde pública associado ao consumo de cigarros. Mas será que isso é mesmo verdade?
Comercialização, importação e propaganda são proibidas no Brasil
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ainda não existem pesquisas conclusivas que comprovem esta função e nem a segurança na utilização dos cigarros eletrônicos.
Por outro lado, diversos estudos realizados mundo a fora mostram que ele causa danos à saúde, em especial ao coração e ao pulmão, mas também à bexiga e ao estômago – mesmo se usado por pouco tempo (dois ou três meses).
Baseado nestes elementos, o governo brasileiro, em 2009, publicou a resolução RDC 46/2009, proibindo a comercialização, a importação e a propaganda de qualquer dispositivo eletrônico para fumar (DEF) no território nacional – ainda assim, não é difícil encontrá-lo em lojas virtuais e de produtos importados.
Em abril do ano passado, foi realizado, em Brasília, um painel para discutir mais a fundo o tema e possíveis alterações na regulação, mas os participantes, com exceção dos fabricantes, que buscam a liberação das vendas no país, demonstraram preocupação.
A constatação foi a de que são necessárias mais evidências para liberar o comércio do produto.
Como funciona o cigarro eletrônico
O primeiro aparelho eletrônico para fumar foi desenvolvido e patenteado nos Estados Unidos, em 1963, por Herbert Gilbert, mas ele não chegou a ser comercializado em razão da falta de tecnologia disponível naquela época.
Quarenta anos depois, o chinês Hon Lik, fundador e diretor executivo da Dragonite International, criou um novo modelo e, em 2013, o vendeu para o Imperial Tobacco Group.
Caracterizado como um dispositivo eletrônico para fumar (DEF), é um aparelho alimentado por bateria de lítio recarregável. No geral, ele conta com uma ponteira, que funciona como piteira e, na parte interna, um tanque onde é inserido o líquido, quase sempre composto de propilenoglicol, glicerina vegetal, água, nicotina e, opcionalmente, aromatizantes – os compostos e as concentrações variam de fabricante para fabricante.
Diferentemente do cigarro tradicional, ele não queima tabaco, ato que produz milhares de substâncias tóxicas, como o monóxido de carbono (fator de risco para infarto) e os alcaloides do alcatrão (agentes cancerígenos). Nele, os aditivos são aquecidos, saem em forma de vapor e são aspirados pelo usuário.
De acordo com Stella Regina Martins, do Programa de Tratamento ao Tabagismo do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e autora do livro “Cigarro eletrônico: o que sabemos?”, estima-se que a temperatura de vaporização possa atingir 350°.
“Isso é alto o suficiente para induzir reações químicas e mudanças físicas nos compostos, formando outras substâncias potencialmente tóxicas, como formaldeído, acetaldeído, acroleína e acetona”, informa a médica especialista em dependência química.
Em teoria, esse produto contém menos “ingredientes” que o cigarro tradicional. Porém, para o pneumologista Luiz Fernando Pereira, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), isso não significa uma vantagem.
“É porque ele possui outros elementos que o comburente não tem. Na realidade, ainda não temos conhecimento de tudo o que o compõe, até porque não existe um padrão entre os produtores. Outra questão preocupante é que alguns modelos dispõem de uma quantidade maior de nicotina, e, apesar de ela não causar câncer, é o que vicia”, relata o médico.
Assim como o governo brasileiro, os especialistas consultados pela BBC News Brasil afirmam que são necessários mais estudos para determinar se o cigarro eletrônico é capaz de ajudar a reduzir os danos à saúde causados pelo tabagismo e também para responder outras perguntas importantes. Causa câncer? É uma porta de entrada para o uso do tabaco? Faz menos mal que o cigarro comburente?
“O que podemos garantir é que este produto não é desprovido de malefícios. Mesmo não queimando tabaco, ele tem substâncias nocivas. Ainda não temos como saber quais são as consequências de longo prazo e, infelizmente, teremos de esperar de 20 a 30 anos para isso”, enfatiza Martins.
Produto tem grande apelo entre os jovens
Uma questão que tem preocupado diversos países é que os DEFs, atualmente na quarta geração, e com aparência cada vez mais dissociada do cigarro comburente, têm um grande apelo entre os jovens, por dois motivos: a opção de poder lhe conferir sabor e toda a tecnologia que eles recebem.
“Existem no mercado modelos parecidos com pendrives e recarregáveis via USB. Tudo isso tem sido um chamariz para os adolescentes. Muitos que nunca tinham fumado um cigarro na vida, agora fumam o eletrônico, e vários fumam os dois, o que é ainda pior”, afirma Pereira.
Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), agência local de controle e regulamentação de alimentos e remédios, declarou recentemente que o uso destes dispositivos entre os jovens atingiu proporções epidêmicas.
Em 2017, mais de 2 milhões de estudantes americanos em nível escolar declararam ao órgão serem usuários regulares, e um relatório elaborado pela US Surgeon General, entidade pertencente ao Serviço de Saúde Pública do país, revelou que o uso desses dispositivos, de 2011 a 2015, aumentou 900% entre alunos do ensino médio. “No Brasil, a situação ainda não é tão grave, mas pode se tornar”, avalia Pereira.
Stella, do Incor, concorda: “Os nossos jovens estão mais protegidos do que os americanos e, para que se mantenham assim, é preciso que o cigarro eletrônico continue proibido. Somos um país reconhecido internacionalmente por nossa exitosa política de combate ao tabagismo e não podemos abrir mão disso liberando a venda”.
Brasil é o 8º país do mundo com mais fumantes
Pesquisa publicada na revista científica britânica The Lancet mostra que o Brasil ocupa o oitavo lugar no ranking de número absoluto de fumantes: são 7,1 milhões de mulheres e 11,1 milhões de homens. Apesar dos altos números, a boa notícia é que a porcentagem de quem fuma diariamente caiu entre 1990 e 2015 – passou de 29% para 12% entre os homens e de 19% para 8% entre as mulheres.
Pela pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde, houve redução de 36% na prevalência de fumantes no país, indo de 15,7%, em 2006, para 10,1%, em 2017 – em 2016, eram 10,2%.
O Ministério da Saúde informa que isso “é resultado de uma série de ações desenvolvidas pelo governo federal”. Dentre elas, destaca a política de preços mínimos e a legislação antifumo, que proibiu o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos e outros produtos fumígenos, derivados ou não do tabaco, em locais de uso coletivo, públicos ou privados, mesmo que o ambiente esteja só parcialmente fechado por uma parede, divisória, teto ou toldo.
Fumar cigarro envolve riscos. O dependente de nicotina expõe-se a mais de 3 mil substâncias presentes no fumo não queimado e mais de 4 mil na fumaça do tabaco, e suas defesas ficam enfraquecidas, favorecendo várias doenças, com destaque para as pulmonares, as cardiovasculares e as oncológicas, e sendo um agravante para o controle de problemas pré-existentes.
Pereira, da SBPT, explica que a gravidade e o risco de surgimento das enfermidades estão relacionados a três fatores: tempo de vício, quantidade de cigarros consumidos e genética.
“Fumar até quatro cigarros por dia já aumenta as chances de desenvolver alguma patologia relacionada. E o fumante, seja ele homem ou mulher, vive, em média, dez anos menos do que o não fumante.”
Para quem deseja largar o tabagismo, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento gratuito. Mais informações podem ser obtidas nos centros ou postos de saúde e na Secretaria de Saúde do município de residência.
Fonte: Renata TurbianiDe São Paulo para a BBC News Brasil