Após se comprometer a recuperar o protagonismo ambiental do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva surpreendeu integrantes de seu próprio governo e recebeu críticas de economistas e ambientalistas ao anunciar a intenção de que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiasse parte do gasoduto Néstor Kirchner, na Argentina.
O financiamento diria respeito a um trecho de 467 km do gasoduto que deverá levar gás de Vaca Muerta, na província de Neuquén, até a província de Santa Fé, perto da fronteira com o Brasil.
O intuito de apoiar o país vizinho no também chamado gasoduto de Vaca Muerta, o maior projeto de infraestrutura da Argentina, foi manifestado durante a viagem do presidente ao país para participar de uma cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em 24 de janeiro. Em Buenos Aires, Lula falou do gasoduto para defender a volta de aportes do BNDES para “ajudar” a economia de países parceiros.
De bate-pronto, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, disse que desconhecia o projeto e a intenção do BNDES de financiá-lo, mas que o empreendimento era complexo e envolvia “riscos socioambientais significativos a serem considerados”.
Dias depois, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que “Vaca Muerta é um projeto que talvez dispense esse tipo de financiamento” e que “a discussão ambiental não deve ser desconsiderada sobre a utilização do gás de xisto”. Apesar disso, defendeu o papel do BNDES em financiar obras de engenharia em outros países.
“Vergonha binacional”
Para Ilan Zugman, diretor da 350.org na América Latina, organização ambiental cujo objetivo declarado é dar fim à era dos combustíveis fósseis, o gás de Vaca Muerta, extraído de uma das regiões mais pobres e endividadas da Argentina, é uma ameaça ao clima, ao povo indígena Mapuche e ao próprio governo brasileiro.
“É uma vergonha binacional”, afirma o ativista climático, que considera o anúncio de Lula como a primeira contradição do novo governo na área energética, indo na contramão de ações adotadas até aqui para arrancar o Brasil da condição de “pária ambiental”.
Zugman chama atenção para o risco de o BNDES colocar suas digitais em uma “bomba climática”, visto que o gás fóssil de Vaca Muerta é extraído por meio de uma técnica controversa do ponto de vista ambiental – o fraturamento hidráulico (ou fracking).
Controvérsias do passado
“O problema não é financiar obras no exterior, é financiar energia fóssil”, pontua Zugman. Ao mencionar “obras no exterior”, o diretor da 350.org faz alusão, mesmo que indireta, à controversa política adotada pelos governos petistas no passado, responsável por transformar o BNDES em alvo predileto da oposição.
Até dezembro de 2022, o banco de fomento registrou acúmulo de 1,04 bilhão de dólares em calotes de obras financiadas em Cuba, Venezuela e Moçambique. O trecho do gasoduto argentino requer 689 milhões de dólares.
Confrontado nas últimas semanas sobre o atraso nos pagamentos ao BNDES, Lula responsabilizou o ex-presidente Jair Bolsonaro por ter rompido as relações diplomáticas com Cuba e Venezuela, razão pela qual teria deixado de cobrá-los.
Fato é que, nos últimos anos, o banco se distanciou do foco no exterior e se dedicou à agenda verde. O próprio Aloizio Mercadante, novo presidente do BNDES, comprometeu-se a manter o banco na direção da transição energética – a agenda ambiental, inclusive, será um dos pontos que Mercadante e outras autoridades brasileiras deverão discutir com o enviado especial do governo americano para o clima, John Kerry, em visita deste ao Brasil nesta segunda-feira (27/02).
A política por trás do gasoduto
Em 31 de outubro do ano passado, um dia após a vitória de Lula nas urnas, o presidente argentino, Alberto Fernández, foi ao Brasil visitá-lo. Acuado pela baixa popularidade, o presidente argentino pode ver suas chances de reeleição, em outubro, aumentarem com o apoio do governo brasileiro, o maior parceiro comercial de seu país.
“A Argentina enfrenta uma série de problemas macroeconômicos muito graves – em grande parte, crônicos. Tudo isso acaba impactando a popularidade do governo”, aponta Marina Pera, pesquisadora da Control Risks para o Cone Sul.
Na combalida economia argentina, além da parceria com o Brasil, a construção do gasoduto de Vaca Muerta pode vir a alavancar as chances de vitória de Fernández nas urnas.
Para Pera, a reeleição de Fernández também interessa a Lula, pois o presidente sabe que o resgaste do protagonismo brasileiro na região depende da parceria com a Argentina, principalmente quando o Mercosul renegocia os termos do acordo de livre-comércio com a União Europeia (UE), sob resistência do Uruguai.
“É uma mensagem muito clara de que Lula quer retomar a liderança regional, com base na ideia de que a integração regional beneficia o Brasil, pois sozinho o país não tem a mesma força”, diz a analista de riscos políticos.
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