O morador de rua que conseguiu vencer os preconceitos e todas as adversidades que sua condição social lhe impunha ao ser aprovado no Enem agora briga para se livrar de outro fantasma: a dependência alcoólica. Mário Batista da Cruz Júnior tem 34 anos de idade e já começou a frequentar as aulas no curso de Administração da UFRN, no entanto vai se afastar da graduação por seis meses para se tratar do alcoolismo.

Segundo informação destacada na página on line do Novo Jornal, em matéria assinada pelo repórter Rafael Barbosa, o tratamento foi possibilitado através de uma liminar impetrada pela Defensoria Pública e concedida pela Justiça Estadual. A liminar obriga o Município de Parnamirim a arcar com os custos da internação em uma clínica que fica na cidade de Monta Alegre. O defensor Manuel Sabino explica que já foi iniciado também um procedimento na junta médica para garantir o afastamento de Mário sem prejuízos à matricula na Universidade.

A história de Mário Júnior ganhou os jornais do Brasil no início do mês de fevereiro, depois que ele foi aprovado no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O morador de rua passou em 2º lugar na graduação que escolheu para cursar na Universidade Federal.

Mário entende que precisa vencer a dependência química para conseguir tocar os estudos e se firmar no mercado de trabalho. Apesar de saber das dificuldades que o alcoolismo lhe apresenta, ele afirma estar confiante e tem a convicção de que sairá curado do tratamento.

Incentivos não vão lhe faltar. “Tive uma recepção incrível na UFRN. Os alunos fizeram uma grande campanha para arrecadar coisas para mim”, conta.

Pai de cinco filhos, agora Mário Júnior só pensa no futuro que lhe aguarda após a conclusão do curso de Administração. E já tem planos.
“O plano principal, o norte da minha vida é conseguir o conhecimento necessário para fazer um trabalho com estrutura junto a pessoas que têm problemas com o uso de drogas, e especialmente focado em pessoas em situação de rua. Levantar a bandeira, de verdade, mesmo”, conta.

Nesse contexto, Mário planeja montar uma cooperativa para prestar auxílio aos moradores de rua. “Dar cursos profissionalizantes, capacitar essas pessoas”, complementa.
A ideia é montar uma espécie de fornecedora de mão de obra. O universitário esclarece que a cooperativa entraria em contato com empresas para ofertar os serviços das pessoas vinculadas ao projeto. “O grande lance para mudar de forma concreta a vida das pessoas é através do trabalho. Antes do trabalho, a formação profissional”, argumenta.

“Apesar de eu viver na rede de assistência, acho que o assistencialismo vicia. Ensinar a andar sozinho é o grande lance, instigar a pessoa a descobrir o que realmente dá prazer nela”, afirmou.

“Não é o ideal, simplesmente, matar a fome. Matar a necessidade imediata da pessoa é necessário, mas não é isso que vai resolver a vida dela. É preciso ir por questões mais estruturais, a educação, primeiro, e depois encaminhamento para o mercado de trabalho. Isso é o que vai causar a diferença”, emenda.

Mário Júnior quer tirar o seu sustento da própria cooperativa, para a qual também planeja montar uma biblioteca à disposição dos atendidos pelo programa.“E também para ficar à disposição da comunidade. Porque há um grande preconceito com relação à população de rua, e aproximar a sociedade desse contexto é uma forma de quebrar o preconceito”, opina, informando que aguarda doações de livros para tocar essa parte do projeto.

Enquanto não conclui a graduação e estrutura o plano de vida, Mário ajuda os colegas do jeito que pode. Ele recebeu muitas doações em virtude da notoriedade que sua aprovação. Ganhou três notebooks, além de roupas, tratamento dentário, material de estudo.

Os computadores ele doou dois, ambos para moradores do albergue onde ele também reside, em Parnamirim. “Tenho intenção de aparelhar o albergue, deixar os computadores lá à disposição para que o pessoal possa resolver algumas questões. Até mesmo isso aí do FGTS (saque dos inativos), quem quiser saber se tem algum para sacar, etc”.

As roupas que recebeu também tem intenção de repartir. Está tentando arrecadar mais para dividir com os amigos. “Eu sou um entre 26 usuários lá no albergue. Então quero fazer o que estiver ao meu alcance para ajudar. Às vezes a pessoa que está no albergue precisa resolver um problema, mas não tem uma calça para entrar num órgão público e resolver uma situação. Então ele fica com a vida presa pelo fato de não ter uma roupa adequada para entrar num órgão”, relata.

Vida de rua

“Você não tem noção da importância que é, simplesmente, tomar um banho. Às vezes você quer muito tomar um banho, mas não tem como”, conta.
Mário foi para a rua pela primeira vez no ano de 2010, por conta do fim de um relacionamento com a segunda mulher, com quem tem dois filhos. “Fiquei desgostoso com a vida, achei que Natal não tinha nada para me oferecer e resolvi ir para onde o vento me levasse”.

Durante um ano e meio, Mário Júnior conheceu todas as capitais do Nordeste. No retorno, restabeleceu a vida. Voltou para Natal por saudade dos filhos. “Em 2015 a vida voltou a ficar bastante bagunçada. Foi quando fui morar no albergue de Natal”, conta, lembrando que logo em seguida foi para o albergue de Parnamirim.

Os problemas com a dependência química se agravaram nessa época. Mário até conseguia emprego, porém as drogas não o deixavam seguir em frente. “Eu usava de tudo. De preferência todas (drogas) juntas ao mesmo tempo”, relata.

Pulou de trabalho em trabalho, sem conseguir se firmar. Vez ou outra conseguia alugar um local para morar, mas acabava voltando para o albergue logo que era demitido.
O contato com a família era limitado. “Limitado por mim mesmo. Eu tinha medo que a minha vida desregrada, as minhas escolhas erradas chegassem a prejudicar meus filhos. Então eu me afastei”.

Hoje amadurece a ideia de voltar a se aproximar deles. Apenas dois moram com Mário, um de 3 anos e outro de 9 meses. Os outros têm 14, 12 e 11 anos de idade.
“É como mexer numa ferida, eu ainda estou superando isso. Eu admito que eu tenho fugido disso, que é a principal característica do dependente químico, é ele fugir das situações. O fato da pessoa procurar vamo dizer… se lombrar é pra não ver, não sentir alguma coisa que incomoda”.

Com os pais a relação inexiste. Os entorpecentes fragilizaram a convivência. “A pessoa que tem problema com dependência química é algoz, mas é vítima ao mesmo tempo. Fere e é ferido. Eu acho que estou no caminho de conseguir me redimir”, avalia.

Na rua conheceu o inferno. Exibindo as marcas no corpo, além das que carrega na alma, Mário Júnior relata as diversas agressões que sofreu. “Na hora que você vai andando na rua, as pessoas têm medo, o mundo anda muito complicado, têm medo de ser assaltadas. As pessoas vão para o outro lado da rua, seguram a bolsa, escondem o celular. Isso tende a te colocar cada vez mais pra baixo. Quando se olha no espelho não vê um ser humano, vê um bicho. A coisa externa é tão forte que a pessoa começa a acreditar naquela visão que os outros têm”, relata.

Ao entrar em qualquer estabelecimento, ele diz, é certeza ser acompanhado pelo segurança durante o tempo que permanecer no lugar. “Seguido o tempo todo. Várias pessoas entrando ao mesmo tempo no local, e você ser o único abordado”, corrobora.

Como os roubos a mendigos são comuns, Mário teve muitas das coisas que carregava levadas por ladrões. Chegou a ter como pertences uma camiseta e uma bermuda.
As agressões físicas também se tornaram rotineiras. Mário sentiu na carne o que é ser morador de rua. “São raros os moradores de rua que não sofrem agressão, tanto das mãos da sociedade, quando da polícia e dos próprios moradores (de rua)”.

Em uma das vezes, a vida marginal lhe colocou em situação bastante degradante. Depois de comprar algumas pedras de crack para seu uso, Mário foi atacado por outros usuários que moram na rua que queriam ficar com a droga.

Durante a entrevista, exibiu as marcas de mordidas que lhe restaram desse dia. Andando por aí, também já foi abordado pela polícia de forma truculenta. Levou baculejo e uma surra dos PMs recentemente. “Lábio partido, dente quebrado, aqui foi paulada, aqui também”, aponta, recordando das agressões.