Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) estima em mais de 900 milhões o número de pessoas vivendo em favelas em todo o mundo hoje. Cercados pela pobreza, esses indivíduos têm acesso restrito a serviços urbanos básicos, como saneamento e alimentação, e estão mais suscetíveis a problemas de saúde.
O documento foi divulgado na Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável, conhecida como Habitat III, que reúne na capital do Equador, Quito, representantes dos 193 países membros da ONU. Eles estão discutindo o primeiro programa detalhado para guiar o crescimento das cidades, que garanta a sustentabilidade, sem destruir o meio ambiente e protegendo direitos dos mais vulneráveis.
O objetivo do evento é repensar o planejamento e a gestão das cidades globais, por meio da adoção da Nova Agenda Urbana. A reunião começou no domingo e se encerra nesta quinta-feira. Na abertura do evento, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lembrou que as grandes cidades ocupam apenas 2% do território global, mas concentram 50% da população mundial.
— A maioria dos problemas que os seres humanos e a Terra têm se devem a nossas cidades e aos assentamentos humanos — disse Ban.
O encontro acontece a cada 20 anos. O rascunho do documento que está sendo discutido tem 175 pontos, e vai “fixar as linhas do futuro desenvolvimento urbano e nos guiar como gerenciar e desenvolver as cidades” pelas próximas duas décadas, afirmou Ban, que pediu aos prefeitos que assumam a responsabilidade de estarem “na frente de batalha pelo desenvolvimento sustentável”.
— O papel de vocês está crescendo a cada ano — disse Ban. — Vocês enfrentam demandas imediatas diárias de suas populações: por habitação, transporte, infraestrutura e serviços básicos.
E a parcela da população urbana mais vulnerável habita favelas. De acordo com o relatório, esses assentamentos precários emergem como um “tipo dominante e distinto” no século XXI, e tende a agregar cada vez mais pessoas. Em 2014, 54% da população global vivia em cidades, mas esse percentual deve subir para 66% em 2050. No mesmo período, a população que habita as favelas deve dobrar de 900 milhões para 1,8 bilhão.
De acordo com o rascunho da Nova Agenda Urbana, houve melhoras “significativas” da qualidade de vida para milhões de pessoas que vivem em ambientes urbanos nas últimas duas décadas, mas as pressões pelo crescimento populacional e a migração do campo para a cidade também aumentaram. O plano das Nações Unidas destaca que fornecer transporte, saneamento, hospitais e escolas é imperativo, mas as estratégias das prefeituras devem ir além das melhorias físicas e integras as favelas na vida social, econômica, política e cultural.
O programa destaca que um impedimento crítico para a melhoria das condições de vida nesses assentamentos é a falta de título de posse ou propriedade sobre a terra. O problema é particularmente grave no continente africano, onde 62% da população urbana vive em favelas e 90% das terras rurais não possuem documentação. Sem o título de propriedade, a ameaça de despejo é constante. E sem o documento, os moradores reduzem seu acesso ao crédito, erodindo ainda mais qualquer motivação para melhorias nas casas e vizinhanças.
Para os governos, particularmente em países pobres, existe ainda a falta de informações. A grande maioria das favelas não é mapeada, pouco se sabe sobre a demografia e o uso espacial do território. E como os assentamentos são muito densos, serviços básicos são difíceis de serem oferecidos. O recebimento de uma simples carta é muitas vezes impossível.
FALTA DE EMPREGO E OPORTUNIDADES
Exemplo disso é Kibera, na capital do Quênia. De acordo com o último Censo, realizado em 2009, a população das 12 comunidades que formam a favela é de 170.070 habitantes, mas outras estimativas, incluindo das Nações Unidas, apontam que existam entre 400 mil e 1 milhão de pessoas. As informações são precárias, mas estimativas indicam que metade da população é desempregada, vivendo com menos de US$ 1 por dia.
Segundo a ONG Map Kibera, apenas 27% dos 50 mil estudantes frequentam escolas do governo. A maioria estuda em instituições informais montadas por moradores e escolar. Violência, álcool e drogas são abundantes, mas a água limpa para consumo é escassa. Os moradores também sofrem com a falta de coleta de lixo e sistema básico de esgoto.
Globalmente, a Organização Internacional do Trabalho estima que 200 milhões de moradores de favelas não tinham emprego em 2013, enquanto a Unesco estima que mais de um quarto dos jovens urbanos pobres recebem pouco mais que US$ 1,25 por dia. À margem da sociedade, essas comunidades criam um sistema de economia informal. O pesquisador Robert Neuwirth, autor do livro “Shadow Cities”, estima que 1,8 bilhão de pessoas no mundo estejam empregados nessas atividades à sombra das cidades.
Na África do Sul, autoridades sofrem para fornecer moradias e serviços básicos aos moradores de Khayelitsha, maior favela da Cidade do Cabo, mas também para reverter a engenharia do Apartheid, que construiu segregações espaciais que existem até hoje. De acordo com o Censo de 2011, 99% da população de Khayelitsha é negra.
De acordo com Axolile Notywala, da ONG Social Justice Coalition, um dos maiores problemas para os moradores de Khayelitsha é a falta de banheiros. Um estudo realizado em 2012 descobriu que 12 mil moradias não possuem banheiros, e essa deficiência está relacionada com a violência contra mulheres e crianças, que precisam andar longas distâncias apenas para urinar. Um modelo matemático desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Yale estimou que dobrar o número de banheiros em Khayelitsha reduziria o número de estupros em um terço.
— Os custos com instalação e manutenção dos banheiros seria muito menor que os danos provocados pela violência sexual — disse Gregg Gonsalves, de Yale, à Reuters.
APLICAÇÃO DOS COMPROMISSOS NÃO É OBRIGATÓRIA
O documento de 23 páginas que deve ser adotado nesta quinta-feira na Habitat III tem pontos como o comprometimento para fornecer às favelas “construções de alta qualidade e espaços públicos (…), evitando a segregação socioeconômica e a gentrificação”, entre outras medidas para reduzir a desigualdade nas cidades. Contudo críticos se mostraram desapontados pela Nova Agenda Urbana não ter metas tangíveis e não ser vinculativa aos estados membros.
— É fácil para governos assinarem algo que não é obrigatório — disse Michael Cohen, ex-funcionário do Banco Mundial que foi consultor das Nações Unidas. — Fala-se muito sobre compromissos, mas não tem datas, locais e números.
O Globo