Na pequena Abadiânia, no interior de Goiás, o médium João Teixeira de Faria, 76, conhecido como João de Deus, tem uma lista longa não só de fiéis, mas também de propriedades. Levantamento da Folha em cartórios do município tido como centro espiritual do médium aponta 27 registros de imóveis em nome do “João curador”, investigado sob suspeita de abuso sexual e de venda de pedras falsas.
Destes, 23 estão na área urbana, totalizando 19.725 m², e quatro na zona rural, com 703 hectares, equivalente a 985 campos de futebol com as medidas do Itaquerão.
A estimativa é que os imóveis, somados, valham cerca de R$ 20 milhões. O valor foi calculado pela Folha em consulta a corretores e membros da prefeitura sobre o preço médio praticado na região. A reportagem também buscou anúncios em endereços próximos de cada propriedade. O patrimônio do médium é um dos focos da investigação do Ministério Público de Goiás devido à perspectiva de pagamento de indenizações às supostas vítimas de violações.
João de Deus está preso desde domingo (16), e a Promotoria diz ter recebido relatos de centenas de mulheres que se apresentam como vítimas.
Na última semana, extratos bancários divulgados pela defesa mostraram que ele possui aplicações no valor de R$ 35 milhões. O Ministério Público apura se houve tentativa de movimentação indevida. Atualmente, a maior propriedade do médium em Abadiânia é a fazenda Mocó, Soares e Tabocussú, cujo terreno, com 439 hectares, foi unificado aos poucos nos últimos anos.
O nome de João de Deus consta em placa atrás do portão que anuncia a Tabocussú, onde ele cria gado.
Áreas na mesma região são estimadas em cerca de R$ 100 mil o alqueire, valor que pode crescer conforme a proximidade do lago e da rodovia —o que leva à estimativa de que a propriedade unificada valha ao menos R$ 9 milhões.
Para corretores, terras do médium têm “valor agregado”. Um deles diz que João de Deus faz o valor que quer, porque a terra é considerada diferenciada na região. Tamanha fama local começou há ao menos 42 anos, quando o médium criou no município a Casa Dom Inácio de Loyola, espécie de hospital espiritual onde concentrava seus atendimentos até dias antes de sua prisão.
A Casa trouxe mudanças a Abadiânia. Atualmente, a instituição é rodeada por cerca de 80 pousadas de diferentes donos, além de lojas de cristais e comércios, a maioria decorados com imagens de santos e de João de Deus. A estimativa da prefeitura era que o local, separado do restante da cidade pela BR-060, atraía cerca de 10 mil fiéis por mês.
É no meio dessa região, onde turistas circulam vestidos de branco, que João de Deus tem ao menos 20 de suas propriedades, entre elas uma área de 3.600 m² doada por uma moradora de Brasília em 1996. Há ainda ao menos cinco terrenos vazios cercados por muros, um deles ao lado de área comercial desocupada.
Na quadra de número 14, um muro salmão com portões em azul abrange um dos lotes registrados em nome dele, adquirido em 2015 por R$ 12 mil. Corretores, porém, dizem que o terreno vale hoje de R$ 150 mil a R$ 200 mil.
Perto dali, na avenida Francisca Teixeira Damas, via que leva à Casa Dom Inácio, vizinhos dizem que o médium é dono de um terreno amplo contornado por um muro azul. Entre 2014 e 2017, João de Deus adquiriu três lotes na mesma quadra, por R$ 50 mil, R$ 60 mil e R$ 140 mil.
De acordo com vizinhos, o líder espiritual costuma comprar os lotes e derrubar antigas construções, construindo muros, a maioria deles em tons branco, bege e azul. Não há placas de venda.Segundo corretores, imóveis perto da Casa têm preços variáveis conforme a localização e área construída.
Em geral, porém, os preços são até 50% maiores em relação a imóveis do outro lado da rodovia. Nas ruas, é comum ver placas apenas em inglês, como “for sale” [à venda]. “Muitos clientes dizem que só compram se for do lado de lá”, diz Cinara Diniz, dona de uma imobiliária.
A previsão, agora, é que a prisão do médium leve a uma queda nos preços.
Os valores na região, porém, não são baixos. Na quinta (20), a Folha entrou em contato com telefones informados em placas de imóveis e lotes à venda e encontrou preços como R$ 180 mil (lote vazio de 500 m²), R$ 500 mil (chácara com duas casas simples e terreno de 1.300 m²) e até R$ 1 milhão (para um espaço com suítes em terrenos unificados que somam 1.440 m²).
Além da região “do lado da Casa”, o médium tem ainda quatro propriedades no centro do município, entre elas uma casa alvo de operação de busca e apreensão na última semana e o terreno onde fica a instituição filantrópica Casa da Sopa, decorada com a frase “Obrigado Abadiânia”.
Entre moradores, João de Deus é descrito como amado e temido. Na região turística, é comum ver placas dizendo que o serviço é “autorizado pelas entidades da Casa Dom Inácio”, nome dado aos espíritos que João diz incorporar.
Proprietários de pousadas relatam que é praxe entrar na fila de atendimento do médium e pedir bênção antes de abrir novos negócios.
Embora tenha em Abadiânia seu centro de apoio, João de Deus tem outras propriedades que vão além dos limites do município. O número total ainda é considerado uma incógnita para autoridades que o investigam.
Em depoimento à polícia, o médium afirmou ter seis fazendas em Goiás: “uma em Crixás, uma em Itapaci, uma em Anápolis, uma em São Miguel, uma em Pirenópolis e uma em Abadiânia”.
Moradores da região dizem que a quantidade real de imóveis, porém, é ainda maior. Na semana que antecedeu a prisão, a Folha procurou pelo médium em uma casa apontada como dele em Anápolis, vizinha a Abadiânia. Funcionários confirmaram que João de Deus era o dono, mas negaram que ele estivesse no local.
Segundo registros da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), o médium possui ainda em seu patrimônio uma aeronave modelo Sêneca (EMB-810C), da Embraer, fabricada na década de 1980 e avaliada em cerca de R$ 400 mil.
E de onde vem a renda de João de Deus? À polícia o médium disse que provém das fazendas e de garimpo e fica em torno de R$ 60 mil mensais.
Outra fonte é a própria Casa Dom Inácio de Loyola.
Embora não cobre por atendimentos, o médium costuma indicar um tratamento à base de passiflora —cada frasco com 80 comprimidos é vendido em uma farmácia no local por R$ 50. Em geral, pacientes recebem a receita para adquirirem dois frascos.
Questionado, Francisco Lobo, um dos encarregados da gerência da Casa, diz não saber o total de frascos vendidos. “Muitos são doados.” Outros funcionários, no entanto, estimam que sejam vendidos 8.000 frascos por mês, o que indicaria renda de R$ 400 mil.
A farmácia vende ainda fitoterápicos para emagrecer (R$ 100), gel cicatrizante (R$ 20), gel contra dor (R$ 30) e xarope para tosse (R$ 20). Outros itens anunciados na casa são água “fluidificada” (R$ 3 a R$ 10) e pedras (R$ 20 a R$ 1.000). Segundo voluntários, também é comum haver doações de estrangeiros.
Na quarta, a polícia apreendeu R$ 405 mil durante uma busca e apreensão em endereços do médium —parte desse montante em um fundo falso de um guarda-roupa. Na sexta (21), mais R$ 1,2 milhão foi encontrado, além de pequenas quantias em dólar e euro.
OUTRO LADO
Responsável pela defesa de João de Deus após as acusações de abuso sexual, o advogado Alberto Toron diz que o patrimônio do médium “nunca foi objeto de questionamento”. Diz ainda que diligência na agência onde ele possui conta, em Anápolis, aponta que “não houve qualquer movimentação ou resgate” de R$ 35 milhões de João de Deus.
Na última semana, a Promotoria informou que investigava movimentação suspeita após as denúncias. “Temos comprovado que não houve essa movimentação. Inventaram uma história que acabou justificando a prisão dele.”
Segundo Toron, para quem a abordagem do patrimônio de João de Deus indica “um desvio” na investigação, o saldo da carteira de investimentos do médium na última semana era de R$ 34,2 milhões.
“O foco da investigação é abuso. De repente, desviaram para ir atrás do patrimônio dele que nunca foi alvo de questionamento”, afirma.
AFolha também procurou o advogado Ronivan Peixoto Júnior, que defende João de Deus em casos cíveis, para comentar o patrimônio e a origem da renda do médium. O advogado não quis comentar.
AS PROPRIEDADES DE JOÃO DE DEUS
27 propriedades em nome de João de Deus em Abadiânia, aponta levantamento da Folha
23 em áreas urbanas que, somadas, chegam a 19.725 m²
4 rurais que ocupam 703 hectares ou quase mil Itaquerões
R$ 20 milhões é o quanto valem as propriedades, em estimativa de corretores e comparação com imóveis próximos
itens apreendidos pela polícia em casas do médium:
R$ 1,6 milhão de reais em dinheiro vivo, em diversas moedas
Seis armas de fogo
Pedras supostamente preciosas
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